Confira abaixo a importante fala de Elaine Espíndola liderança do Mocambo da Cidade Baixa. Narra sua História de Vida, uma das histórias não contadas de Porto Alegre.
Apresentamos o vídeo em duas partes e abaixo a transcrição completa de sua fala.
Primeira parte.
Segunda parte.
Transcrição completa:
Fala da Elaine Espíndola, do Mocambo da Cidade Baixa, registra sua História de vida no lançamento do Site PoAncestral. Abaixo a transcrição completa.
(...) Eu confesso que pra nós o convite era para assistir ao lançamento do projeto. E isso nos deu uma tranquilidade, no sentido de que ouviremos mais uma vez, a minha querida parenta, porque desde 2016, nós nos encontramos trabalhando numa cadeira, na universidade federal, nós nos redescobrimos, porque se fala em redescoberta, uma irmandade, que de muito tempo havia sido deixado de celebrar.
Agradecendo à minha irmã Iracema, eu queria dizer, e também fico arrepiada e emocionada, que quando aqui chegamos, quando o meu povo chegou, quando os meus mais velhos chegaram, estava aqui o povo dela.
Para me ensinar ervas, junto as ervas que eu trouxe de conhecimento, íamos somar. E uma luta de resistência ia se desenvolver nesta terra. Bem-dito seja, o momento em que ela pode falar, usar, lembrar o seu dialeto, a sua linguagem. Tristemente, a lembrança que dos meus, pela separação, pela diáspora da época, nós nos isolamos. E, sabendo, pela própria História, que cada grupo desembarcava num local e nunca mais se encontrava, justamente para que não houvesse essa integração.
E caminhando e caminhando, aqui está uma mulher com 76 anos, oriunda de uma família que dizia o seguinte: se quiser me ver feliz, me dê para ver um livro sem letras. Se quiser me ver caminhando com felicidade me dê um sapato velho. E aí inicia a política sem ler, sem saber. A política da escravidão, do cerceamento dos direitos e deveres como a Pátria que a gente estava chegando, tão bem colocada aqui pela Iracema (Cacica Iracema) e sua sobrinha.
E chegou aqui uma mulher com 18 filhos, uma mulher que levou de São Sebastião do Caí, uma mulher, que em 18 dias, numa época mais moderna levou, saindo pelo fundo do rio Riachuelo e chegou a Porto Alegre. E daí inicia uma história, em que ninguém sabendo ler e escrever. E como o povo negro, a minha etnia, ela consegue sobreviver na base da intuição, do desvio do pensamento daquilo que é ruim. Porque nós devemos, sempre ter, nos foi dito, ensinado que, o medo a gente enfrenta, porque tu te prepara porque tu sabe que é o medo.
Mas tem o outro momento que é o receio, que nos leva a ficar paralisados. Porque o receio, ele te pega de surpresa. Tu vem, tu não está preparado para ele, tu não tem como sair, tu não tem como fazer outras escolhas, e tu te descrimina mas o medo de alguma coisa que possa te machucar, ele te marca, e faz com que a defesa do teu, ela fique presente na tua alma.
E essa defesa, ela veio n a nossa ora lidade, ela veio nos hábitos, ela veio na gastronomia. Essa defesa, ela veio nos sons, batuques que tocavam, ela veio numa memória difícil de se apagar. E cada ato, realizado no longínquo passado atravessando os mares, aquele mais velhos nos colocava, por isso a questão da roda, ele nos contava, contou para a minha vó, contou para a minha mãe, a minha mãe contou para mim, eu conto para a minha neta.
Toda a verdade que não está nos livros. O formato que faz com que a gente não se enxergue, porque a invisibilidade é a nossa marca. E por isso, tempos depois, aquilo que mais fica parecido, como alguém que guarda a história da sua etnia, é ser um Griô, porque ninguém me contou, eu não ouvi falar. Os meus me falaram da proximidade das rotas de fuga, quando se sentavam para comer o que fosse, celebrando aquele alimento, porque vocês já observaram que para nós o círculo, a importância que tem, porque na volta, lá na nossa memória, lá daquilo que nos marca, aquela volta, ela me diz quando chegávamos. Chegávamos, eu me sinto presente, porque comigo também hoje, séculos depois eu tenho uma nação. Esta nação ela me deixa, às vezes, saudosa e feliz.
Mas eu estou podendo falar. Os meus tinham que ficar calados. E quando voltavam, olhavam à volta, aí sentavam e comiam. A história já conta, a gente sabe, que aquelas partes que não eram nobres, etc, etc, e isso não vale falar agora porque os livros, por uma coisa muito boa, já estão até sendo retirados da parte educacional, porque nos mostrava, e alguns insistem ainda em nos mostrar, aquela coisa das mãos amarradas, nós não queremos para nós.
Aquele tambor construído na Praça Brigadeiro Sampaio, ele foi construído e quando tivemos que registrar, nós tivemos que escrever Movimento Negro Organizado, como se a gente nunca tivesse tido organização, esquecendo que quando roubaram as nossas jovens, roubaram o nosso futuro de África, tiraram a organização real deles. E para cá o que que restou para nós.
Restou, anos depois, pegaram as nossas meninas, e colocaram em que reinado? Aonde que as nossas mulheres são rainhas? Aonde que nós as vimos e as achamos belas? Na escola de samba.
Este é o reinado que nos sobrou, este é o reinado que tiraram de culturas, que nós poderíamos estar a cada dia, e a cada momento, ensinando também os nossos de lá. Mas não se chora em cima do leite derramado, se transforma este leite, não é mais um limão numa limonada. Mas, num bom alimento, e se transforma em vida e se coloca junto ao nosso seio para que nossos filhos mamem, se necessidade tiver, também que filhos de outras mulheres mamem, se alimentem do nosso leite, porque a irmandade, a igualdade, nós sabemos que ela não está no tom da nossa pele, nós sabemos que ela está em nós enquanto ser humano. Porque esse dom, essa mistura, esta interação de amor, isso aí nos leva a depararmos como uma questão tão bonita de que a beleza ela pode também estar na minha etnia.
E esta beleza, eu tenho que mostrar, que este bairro, que na cidade baixa, para onde fugiam, se escondiam, também passavam mulheres belas e essas mulheres belas, elas estão fazendo o que? Elas estão tendo, pela primeira vez, de poucos anos para cá, e através das leis, elas estão podendo ler, se formar, porque até isto também nos foi proibido.
E quando fui fazer Direito não concluí. Não pude fazer a rematrícula, porque faltava na época 24 reais, e não pude continuar o meu curso. Mas lembro muito bem, que naquele momento eu tinha um compromisso de levar adiante, poque eu era a primeira mulher que a gente conseguiu identificar na nossa geração, porque os nossos livros não têm na nossa demarcação, que estava sabendo ler e escrever.
E, as estratégias do povo negro, levaram a mim, a Nilce que está aqui, levaram a mãe, a minha mãe, para um lugar magnífico que é poder passar adiante a nossa História, mas buscando resistir. É uma resistência diferente de estar junto, de dentro do meio ambiente que tanto nos protege, nos dá saúde, e que também nos dá a vida, uma coisa saudável. Mas é aquela de demarcação de território, e aí surge a história do Mocambo.
Homens e mulheres de diversas etnias, que por ali passaram, deixaram um extrato muito interessante.
Quando fui pagar um aluguel, que os famosos cortiços, que se chama, que se lê na literatura, aqui na Cidade Baixa, também existiu, nós moramos em cortiço. E fui pagar o aluguel, naquele dia, o proprietário estava fazendo 93 anos uma coisa assim, e sabe o que ele me disse: engraçado a senhora hoje tá aqui me pagando e eu queria lhe dizer uma coisa: "quando eu fiz oito anos, eu ganhei dois escravos de presente". Aqui, há pouco tempo. Eu tenho 73 anos mas isso pra mim é como se fosse ontem. Porque a Cidade Baixa tem todo esse aparato, dessa história, só valorizada e tida como muito bela, como um lugar só cultural e da noite.
Mas ela tem essas histórias de vida: e, porque ele ganhou esses dois escravos, com oito anos. Para que não fossem embora, João Alfredo, eu morava na Rua Jo ão Alfredo. Porque ao poder público interessava esta colonização, este povo, pra nós, não.
Demarcamos este espaço, porque a minha vó, em viagem para cá, com seus filhos, ela não tinha alimentação, morava na beirada do Rio Riachuelo, o que disseram para ela: "olha, tu vai, tu embarca", e ela veio de barco para cá e aqui se alojou. De todas as populações negras, na sua maioria, realmente era na margem do lado de lá do rio, e este rio a gente sabe que também passava pelo Riachuelo. E nós também resolvemos demarcar o espaço.
A política pública habitacional, foi lá para a Restinga (…). Minha mãe não foi. E, não se falava na questão dos quilombos, não se falava na questão da terra. Porque para muitos o importante é o tamanho da terra. Pra nós não, o importante, é a terra onde passaram alguns. E aquele pedaço onde está o Mocambo, que recebeu uma permissão de uso da prefeitura na época, no ano 2000 mais ou menos. Aquele ali, a gente fundou uma associação, os mais velhos estavam morrendo, e esses mais velhos queriam deixar alguma coisa.
E a gente, pelo único instrumento que tinha na época, que era o Orçamento Participativo, e fomos dizer que queríamos estar num lugar que tivesse significado. E escolhemos aquele pedaço de terra, na frente do Largo Zumbi, os nossos marcadores estão ali. E ali ficamos, plantamos a nossa História de Registro, de que é um grande território da Cidade Baixa, sim. Mas nós não tínhamos nem força, nem política, nem a mão de obra, porque os nossos maridos, os irmãos mais velhos, eles foram se encantando e partindo e ficaram também só as mulheres.
Eu sou uma das mulheres mais velhas, que estou, agora, neste momento dirigindo o nosso quilombo. Isso dá uma sensação de que realmente não posso ter medo, porque eu tenho que me preparar para alguma coisa. Mas o receio de que ainda enquanto política pública, a gente não é bem-vindo para ficar no espaço, ele é diário.
E, assim por muitas leis que se cria da noite para o dia, nós estamos correndo risco de devolver o termo de permissão, porque a especulação imobiliária neste momento, independente de ser imobiliário ou moradia, ela está tirando a marca daqueles que construíram seu bairro e que estão na sua história.
Pra nós ali é muito importante, porque mulheres como a Maria Eulália e a Romilda e o tio João que ficaram ali até pouco tempo, antes de partirem, eles gritavam a cada momento dizendo que viam aqueles lá de traz e esses lá de traz é uma ideia que a cada dia eu tento passar, para que essa nuvem que vai ficando na memória da gente, ela não se apague, mas essa luta ela passa por momento de muita solidão, a sociedade, ela quer muito movimento. E o movimento, mesmo sendo necessário ir para as tecnologias ele precisa preservar uma coisa mais importante que é a alma, que é o amor, como a Iracema também falou, que é a condição de poder nos ???? que pertencemos a essa terra, tá muito difícil, no ano da graça de 2023, ser cidadão em Porto Alegre, assim como em todos os outros municípios, eu acredito.
Mas ser um cidadão, pensem bem, que não tem uma cultura europeia, para apresentar ao poder econômico e dá uma resposta financeira. A nossa luta ??? É, ficar naquele espaço e dizer muito, muito, muito, mesmo, e dizer: estamos aqui, porque aqui também é o nosso lugar.
Nós queremos dizer pra vocês, a questão da ancestralidade, ela move montanhas, mas, ela também deixa marcas.
E quando ela deixa marcas, nem sempre a gente dá melhor da gente, porque a gente também é obrigado a se travestir de coisas que nos dão vontade de desistir da luta. E isso não é salutar. Não posso chegar aqui e dizer, vamos desistir, vamos entregar. Não!
Tenho que chegar e dizer: não tenho medo, só tenho receio de que pelas leis, de um dia para outro, tirem aquele ponto que não querem, eles tirem nosso quilombo que naquele espaço, na frente do Largo Zumbi, destruído por um temporal, há sete anos. Este ano é que foi cortada uma tal seringueira, e todo o tronco está lá dentro, estamos sem poder nos mexer, quem passa lá e vê o telhado, aquilo não foi de agora, foi de sete anos atrás. Tivemos que as famílias que estavam ali, sairmos, correrando,
nunca mais voltamos, como moradia pra lá e estamos neste momento, lutando muito pra que possam três famílias voltarem para quando a Fundação Palmares chegar, nós somos os próximos, eu acredito, da visita técnica, a gente possa estar lá dentro, e daí cada dia mais um obstáculo legal, para que nesse obstáculo, tu não esteja la dentro.
Então quando a gente também fala no apoio e na resistência, a gente quer dizer que é um pedido de socorro, é. Mas que principalmente saibam que ali, pulsa o corpo de homens, mulheres e crianças, que querem demarcar tudo, que o quilombo do mocambo, ele é feito de vários pedaços de etnias que deixaram suas marcas e formaram a Associação.
Quando nós fomos registrar eles disseram que tínhamos estar organizados e colocar um nome, como nós não queríamos perder a marca negra, nós somos um quilombo, mas nós somos a menor parte dele que é um Mocambo.
Então somos um espaço bem reduzido, mas que temos assim, uma vontade enorme de dizer que não existem pedaços pequenos. Existe a pequenez da política, principalmente do poder público quando um grupo que construiu também a sua cidade, está prestes a desparecer, então esta é a mensagem real, deste espaço que circunda vocês também, porque nós estamos muito próximos aqui.
E esta questão do tamanho, a gente se sente orgulhoso de poder dizer, principalmente ao nosso povo indígena, que bom que a gente se encontrou lá atrás, e que este respeito permaneça em nós. É isso!
Inês Vizentini.
Que bela aula de História que nós tivemos agora, com a Dona Elaine. Muita emoção, muita coragem, muita força para fazer essa luta de resistência, do nosso apoio necessário também. Muito obrigado Dona Eliane.
Se você quer assistir algum outro vídeo, como parte do vídeo completo da Elaine, que decida abaixo:
A ancestralidade move montanhas e deixa marcas.
A demarcação do Mocambo, luta diária.
Encontro de etnias, luta e resistência.
A sobrevivência na base da intuição.
Quilombo Mocambo, não é tamanho, é cultura!
O poder público - uma história na Cidade Baixa.
Aqui você assiste o vídeo completo, em duas partes, e encontra a transcrição completa de sua fala.
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